Uma crônica nordestina

Autor: Clodoval de Barros Pereira

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Mário de Barros Pereira aos 100 anos de idade

Chegou às minhas mãos uma bela crônica escrita pelo meu tio Mário de Barros Pereira, intitulada A NATUREZA E O HOMEM. Ela foi postada nos Correios da bela praia de Manaíra, situada no litoral da capital paraibana, lugar que ele escolheu para viver depois que residiu em vários estados brasileiros. Tio Mário era visto como um homem de muita disposição para trabalhar; gostava de ler, era um excelente comunicador e por ser leal e solidário sabia construir amigos e conservá-los como poucos. Aliás, essa característica era extensiva a todos os seus irmãos.

Por ele ser poeta e cronista de bom quilate, escreve com maestria do sofrimento do homem que vive no nordeste, especialmente nas terras secas dos sertões, da luta travada contra as intempéries e da tristeza que o acompanha quando, empurrado pela estiagem ou pelo senhor dos engenhos é obrigado a partir à procura doutros mundos para tentar sobreviver.

Ah como eu gostaria de ter escrito a crônica A NATUREZA E O HOMEM ! Ela trata de um tema que será sempre atual. Fala, inclusive, dos governantes que deixam de levar água e justiça aonde não existem. O que ele aborda faz com que a sua crônica torne-se histórica e viva tanto quanto os juazeiros que oferecem suas ramagens para quem foge das terras escaldantes à procura de uma sombra para descansar a fadiga de uma longa caminhada.

Tenho provado do sofrimento que aflige o nosso irmão nordestino. Também deixei Alagoas e caminhei por esse imenso Brasil a procura de um lugar onde pudesse ganhar o pão menos sofrido. E olhe que eu venho da zona da mata, da região de solo fértil e molhado, onde, conforme Pero Vaz de Caminha, “se plantando tudo dá”, mas os “coronéis” se fizeram donos das terras e dos frutos paridos até pelas árvores silvestres.

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Foto tirada em João Pessoa. Ele com o sobrinho Pablo Almeida de Barros Pereira.

Os “coronéis” se arvoram donos de tudo! E há quem diga que são mais cruéis que uma estiagem prolongada, eles estendem seus mandos por todas as instâncias e se proclamam senhores absolutos da vida e da morte.

A crônica escrita por meu tio fala da seca que devasta as plantações, mata o gado e esvazia os açudes enquanto os “coronéis” saqueiam o Erário e armam jagunços para emboscar quem discorda que estendam suas garras em todos os escalões através dos seus consanguíneos ou apaniguados.

Portanto, não é de estranhar o quanto tio Mário sentiu quando viveu sem aspirar o cheiro de sua terra, a visão dos seus campos e o calor humano de sua gente. Ele sabe o quanto dói deixar os familiares e a gente de têmpera igual a nossa suportando a fome e a sede, sem se render nem se entregar, a não ser por amor.

Eu mesmo quando tive que deixar a terra amada, parti pensando em um dia voltar para ajudar arrancar àquela venda que os “coronéis” colocaram na estatueta que simboliza a Justiça, para que ela não pudesse ver as quantias surrupiadas dos cofres públicos e as crueldades praticadas contra o povo.

A NATUREZA E O HOMEM demonstram que tio Mário é cronista talentoso e está preparado para escrever sobre a nossa terra, a qual ele conhece como ninguém. E, desde já, confesso que suas crônicas estão à minha cabeceira, ao lado das obras do Velho Graça, do Zé Américo, do Zé Lins do Rego e doutros mestres da literatura brasileira, especialmente da nordestina.

Aliás, literalmente, é com eles que tenho convivido ultimamente… Muitos dos amigos que se diziam meus irmãos afastaram-se assim que a estiagem bebeu a última gota d’água existente em meu pote.

Eram muitos esses “amigos”. Uns continuam como eu, “roendo o pão que o diabo amassou”, outros fazendo de eleitores despolitizados escadas para alcançarem as maçanetas dos cofres das Prefeituras e do Governo, muitos deles chegaram aos Tribunais, ao Parlamento, Secretarias e Ministérios.

Vejo-os nas páginas dos jornais e nas telas das televisões. Ficaram ricos, compraram terras, aproximaram-se dos “coronéis” que combatiam e se distanciaram do povo. Andam bem vestidos, sorridentes e com os bolsos recheados de cédulas surrupiadas dos cofres públicos, graças ao voto ludibriado de uma parcela de eleitores que ainda não aprendeu distinguir os que trabalham a serviço do bem dos que se dedicam ao mal.

II

Jamais pensei que usaria o texto acima, escrito há quase uma década, para homenagear o meu tio Mário de Barros Pereira e levar ao conhecimento dos seus inúmeros familiares e amigos, especialmente os de Alagoas e Pernambuco que ele partiu depois de 103 anos vividos cercado de muito amor e admiração daqueles que tiveram a felicidade de usufruir do seu saber.

Sua partida se deu na madrugada de sexta feira de 10 de novembro de 2017. Antes da fratura do osso fêmur, encontrava-se lúcido, escrevendo seus belos textos quando teve que deixar a sua amada João Pessoa por força desse acidente que lhe ceifou a vida, deixando-me profundamente consternado. Também pudera, além de ser irmão do meu pai, a quem muito eu queria, nunca deixou de visitar os parentes com quem melhor se identificava, somente depois de completar os 100 anos de vida foi que avisou:

− Completei 100 anos, vou para de andar, quem quiser me ver terá que ir a João Pessoa.

Contudo, depois disso, em duas ocasiões ainda foi à Brasília e a são Paulo visitar as netas Taciana, Silvana e suas bisnetas, filhas de ambas, incluindo claro, seus respectivos genros.

Era um Pedro Veríssimo, um Clodoval em seu jeito aciganado de viver correndo mundos, fazendo o que gostava sem se preocupar com o preço que a vida ia cobrar. Foi Tabelião em Santa Rita, na Paraíba e em Montividiu, em Goiás. Foi comerciante, teve Farmácia, fazenda de criação de gado em Alagoas e Goiás. Era um homem de muito saber.

A sua ânsia pelo mundo só foi atenuada depois que conheceu na capital paraibana a linda filha do Maestro José Ramalho, a professora e pintora Alice Ramalho com quem veio a casar e ter os filhos Beto e Ilma, mesmo assim ainda morou em Goiás e Alagoas.

Gostava de mim e eu dele, tanto é que aonde eu tivesse morando, quando menos esperava, lá estava ele. Se fosse longe, ele pegava o avião e chegava sem pressa para voltar, queria conviver comigo e com todos do seu sangue, pena que eu não retribuía à altura, isso é, em termos de visitas, mas ele sabia da minha correria, da minha luta pela sobrevivência.

E após o acidente, nem falei com ele nem com sua filha Ilma Ramalho de Barros, pedia que Terezinha fizesse por mim. Nunca gostei de ver homens invencíveis acamados e sempre que possível procurei fugir às despedidas.

Não compareci ao seu sepultamento, pois quando tomei conhecimento não havia como chegar a tempo. Sei que ele gostaria que me fizesse presente, embora tivesse que sofrer uma dor incalculável por ter que vê-lo inerte. E eu queria ir, mesmo que o meu coração arrebentasse.

Ao perder uma pessoa querida, perco também o espaço que ela ocupava no mundo, por isso tenho repetido que a cada perda, olho de lado e vejo que o mundo vai se estreitando, diminuindo, ficando menor.

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Maceió, 11 de novembro de 2017

Reflexões de um terráqueo

Autor:  Clodoval de Barros Pereira

“Não basta que seja pura e justa a nossa causa.

É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.”

 Agostinho Neto

foto do Homo sapeam

Homo neanderthalensis (0,03 – 0,3 milhões de anos atrás)

Conheci pessoas que mudaram de nome, mas eu continuo com o mesmo que recebi após ver a luz. E a gente dessa época sabe disso porque escutava minha mãe assuntando sobre meu destino, previa que seria bom, que me faria feliz.

Contava ela que eu falava em sua barriga antes de nascer, o que me intrigou, pois, ainda não aprendi a conversar. Cheguei a pensar ser obra do espírito do nosso último elo, o Homo neanderthalensis, sugerindo-me experiências vividas.

Com o passar do tempo desejei desvendar os mistérios das minhas falas e das razões que me fizeram juntar-me aos que desejavam melhorar a vida dos trabalhadores implantando uma nova ordem política, econômica e social.

Tantas vezes, procurando respostas às minhas indagações, esquecia o olhar entregue ao ocaso do entardecer… E era tanto o meu alheamento que nem percebia o momento que ele se fundia à noite para formar um manto escuro sobre a terra.

E sob essa coberta, eu enxergava lances vindos da minha memória, a exemplo da chama trêmula que se elevava do pavio de um candeeiro pendurado numa parede de taipa, numa casa erguida à beira de um riacho que marulhava noite e dia.

Mas o tempo se encarregou de mostrar que eu era um mamífero dotado de amor e ódio e poderia escolher um ou outro para usar a serviço da humanidade. Optei pelo amor ao imaginar na possível necessidade de usá-lo na neutralização ódio.

Optei por essa escolha ao saber que nossa espécie era guiada por um instinto libidinoso que inquietava os machos e as fêmeas ao ponto de não resistirem a força emanada por ele e se deixarem levar ao extremo da bestial irracionalidade.

Será que os irracionais são tão abusivos com os seus como nós com os nossos? Acho-os comedidos, até por não explorarem sua espécie nem importunarem suas fêmeas, a não ser que manifestem fisiológica e instintivamente seus desejos.

E lembramos que os elefantes não desprezam os seus especialmente se percebem que a morte os ronda. A nós, já houve quem nos alertasse sobre a prática do amor e da solidariedade, mas continuamos egoístas, odientos e insaciáveis.

Precisamos meditar sobre o rumo que escolhemos ou nos foi imposto. É comum aos impostores pensar em encher suas panças e berrar contra o aborto sem se preocuparem com o destino das grávidas famintas e abandonadas.

Não devemos esquecer que essa é uma das violências que também servimos de instrumento. Creio ser uma herança ancestral, contudo, apesar de rústico terráqueo, ofereço-me para o combate, desde que se reparta o fruto do trabalho produzido.

Finalizo essas reflexões lembrando aos cristãos que antes de Karl Marx recomendar “a cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade, um Galileu há dos mil anos já repartia com  ” cada um, segundo a necessidade que cada um tinha.”

Maceió, 17 de junho de 2016

Tributo a Edson Gomes Lins

Autor:   Clodoval de Barros Pereira

AACB FOTO DE EDSON DIANTE DA CAPELA

Edson Lins diante da Capela que mandou construir para Padroeira do engenho, Nossa Senhora de Fátima.

PP7GU, PP7GU, Edson Gomes Lins, Engenho Ouro Preto, Alagoas, aqui chamando PP7ABB, Clodoval de Barros Pereira, aquele que você apadrinhou para o ingresso na rede de Rádio Amadores do Brasil.

Nenhuma resposta…  Ora, ora, o que teria acontecido ? Ele sempre está K A P.

Será que Aquele que orquestra todos os sons achou que 70 anos no ar já era suficiente e resolveu silenciar os microfones dos 40 rádios de PP7GU ? Ah, não me darei por vencido, continuarei insistindo.

PP7GU, Edson Lins, aqui chamando Clodoval, PP7ABB, América Brasil Brasil.

Seus inúmeros colegas espalhados pelo Brasil e pelo mundo continuam chamando sem obter retorno. Muitos dos adeptos do rádio amadorismo, do aeromodelismo e do ferreomodelismo desconhecem a ausência de PP7GU e seu consequente silêncio.

Seus filhos Ricardo que reside no engenho onde planta canas e cria gado e Cláudia que cultiva flores tropicais e tiveram a sorte de uma vivência mas próxima a ele devem saber do que o que poderá ter ocorrido.

Mas isso não impede que conversemos fora do ar, uma vez que os entes queridos não morrem, tanto é que lhe sinto aqui junto aos seus familiares e amigos escutando o que lhe falo e sabendo que o vejo em minha imaginação. E sabe, também, que nada será capaz de anuviar a imagem da pessoa que amamos, muito menos fazer esquecer o que vive dentro de nós, porque, mesmo que venhamos a perecer, outros continuarão a cultuar a memória de quem a vida imortalizou.

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Sua filha Cláudia Nobre Lins tendo ao fundo o antigo prédio do engenho Ouro Preto

Você bem sabe que quando a saudade me batia ao peito, eu pegava a estrada e chegava aí para colocarmos nossa conversa em dia. E sempre que chegava a Ouro Preto botava abaixo em sua casa e você, sua mulher Olga Nobre Lins e seus filhos me recebiam com a mais prazerosa das alegrias. Essa receptividade produzia um astral que refazia minhas energias, era como se eu chegasse picado de cobra e mordesse a casca do pau Teú, como fazem os Tejos quando mordidos por serpentes venenosas.

Também pudera! Aqui nasceu você, Luzinho, Enildo e Zezito aos quais também, sempre devotei minha amizade. Zezito, eu e meus irmãos Clodomir, Edvalson e Jurandir nos tornamos moleques da bagaceira do engenho juntamente com Tejo, Amaro Firmino, Nego Chicau, Tonho Preto, Severino dos Ramos Lins e tantos outros que ficaria cansativo citar seus nomes.

Com o correr dos anos, quando você ficou a frente do Engenho e se tornou o senhor destas paragens, chamou meu pai para retornar a terra onde ele se criou e me convocou para fazer parte dos seus colaboradores, como conto na crônica ERA ASSIM QUE EU VIVIA. Nessa época eu tinha treze anos de idade, porém, se assim não tivesse acontecido eu não teria aprendido nem conquistado sua confiança para que você me abrisse caminho aos créditos nos Bancos e ao trabalho nas usinas de açúcar.

Nunca falamos sobre isso, mas sua ajuda me fez chegar a comerciante, fazendeiro, criador de gado, plantador de canas… Depois gerente de usina. Sim, gerente de usinas, porque você convencia os usineiros que eu sabia administrar, que eu dominava uma porção de coisas. Eu nunca acreditei que soubesse nada, mais você acreditava e eu, de forma despretensiosa, esforçava-me para que os patrões se manifestassem de forma satisfatória em relação a sua indicação.

Meu amigo, você sempre gostou de ajudar as pessoas, tanto é que jamais deixou de acolher em sua casa e empregar em sua modesta usina de açúcar, mel e aguardente, os parentes, os amigos necessitados ou decaídos…

Sempre foi assim, se não tivesse o que fazer, você inventava; se o dinheiro tivesse escasso, arranjava um meio, tirava do pouco existente. Se um parente ou um amigo batia à sua porta, você repartia a água e o pão como fazia Aquele que palmilhava os ásperos caminhos da Galiléa. Nunca lhe vi dando as costas, nem se fazendo de desentendido diante de quem chegava exausto, precisando de um arrego, um pouso, um lugar para viver.

Havia quem não aprovasse aquele seu jeito de viver, contudo, assim não pensam seus colaboradores mais próximos como Antonio, Cicinho, Zé Preto, Marlene, Beijú e muitos dos que engrossam as fileiras daqueles que fariam tudo  para continuarem ao seu lado na labuta diária.

Em Ouro Preto nasceram muitos dos nossos, alguns partiram à procura doutros mundos, inclusive eu fiz algumas revoadas, mas retornava ao convívio desse paraíso maravilhoso, habitado por pessoas queridas, não só parentes como você, mas descendentes das famílias Firmino, Chicau, Miro, Nô e de tantas outras trazidas para trabalhar, no ano de 1914, pelo seu avô Salu a quem sempre reconheci como um dos homens mais inteligentes, honestos e empreendedores que conheci.

E você seguiu as pegadas dele, do senhor a quem eu, menino, chamava de pai Salu e depois de tio Salu por ser ele irmão de minha avó paterna. Olha Edson, não fosse a acidental enfermidade que se interpôs em seu caminho, tenho certeza, habitando uma das encostas ao pé do vale desse paraíso verde, você suplantaria o século de sua existência criando gado, plantando canas, fazendo açúcar, mel e a centenária aguardente Ouro Preto que ainda hoje saboreio como uma das melhores que já tomei.

E você sabe disso, e em seu nome irei levar ao meu amigo Pedro Cabral, renomado professor de Arquitetura, pintor e poeta de alta qualidade, um dos garrafões de aguardente que há três anos peguei aqui para ele, porém o meu jeito de caipira tímido e reservado, fruto desses mundos, retardou até hoje a entrega do precioso líquido.

Tenho outro garrafão que vou pedir ao Pedro Cabral para oferecer a um menino que conheci em Palmares. O menino é filho de “seu” Almeida, aquele que era Gerente do Banco do Brasil. Você mesmo lembrou que o pai dele era um funcionário exemplar e que nos atendia imbuído do saber e do respeito que o seu porte impunha.

Esse menino se chama Sávio Almeida, hoje é um respeitável professor universitário, filósofo e sociólogo, sei lá, sei que é um homem muito inteligente. Eu lhe disse que o vi em fotografias, publicadas em jornais, saboreando “uma branquinha.” Mas o que eu ia dizer mesmo era que gosto do que ele escreve…

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Ricardo com Edson numa das duas casas de rádios e aeromodelismos no engenho.

Houve silêncio e enquanto ele se fez, tomamos o costumeiro cafezinho, você acendeu seu inseparável cachimbo e eu olhei o relógio e constatei que a hora da partida se fazia necessária.

Em Recife, já pensando em retornar ao engenho, recebi um telefonema mandado por sua filha, a Juíza Valéria Lins Calheiros, avisando que você havia aprofundado o sono e só voltaria ao engenho para se entregar ao repouso eterno.

Talvez, por isso, hoje, falei de coisas que você bem sabe, eu jamais ousaria. Presumo ter sido o somatório do choque da notícia, da certeza da ausência e da frustração motivada pela perda, que me fizeram retomar nossas conversas. Lembra-se das elogiosas referências que você fez ao respeitável Juiz, o primo Antonio Luna o que eu aprovei com entusiasmo.

Falo do Tonho porque estou rememorando o emocionado discurso que ele pronunciou durante suas exéquias realizadas em Ouro Preto. Em sua fala, ele proclamou a amizade que tinha por você de forma tão veemente como se tivesse escutado o que falamos sobre ele. Isso mesmo, escutei-o repetir várias vezes que perdera um grande amigo.

E eu que nasci nessas paragens, que andei sob as sombras das frondosas árvores destas matas, mergulhei nos riachos, montei cavalos, e convivi com homens bons e amazonas bonitas e meigas, o que dizer?

A voz embarga, os olhos marejam e não consigo enxergar com nitidez os campos que eram tão meus. E você sabe mais que eu, as terras não têm alma, são as pessoas que dão alma às terras. E você, Edson, sempre doou seu corpo e sua alma ao engenho Ouro Preto.

Tanto é que você pediu que voltassem seu corpo para o sono eterno no solo que tanto amou e que durante 92 anos viveu e pisou sobre ele. Não tenho dúvida do seu empenho quanto a orientando dos seus filhos Ricardo no plantio de canas e Cláudia Nobre Lins no cultivo das flores tropicais enquanto os demais se organizam para ocupar a parte a que fazem jus e se empenharem na tarefa de restabelecer a alma de Ouro Preto.

Convicto do esforço dos filhos do amigo/irmão não posso esconder o  desejo de que tudo vai andar como sempre andou.

É natural a sensação que nos invade quando perdemos um ente querido, a primeira coisa que nos vem é que o mundo ficou menor e o ninho onde pousávamos nunca mais será o mesmo.

Reina a dor e o silêncio, até as palavras que ouvíamos não emudecem totalmente porque continuam ecoando em nossas recordações.

A mim fica o lamento doloroso da perda do derradeiro amigo.

Maceió, 05 de junho de 2016

O Norte alagoano fica menor

 

Autor:  Clodoval de Barros Pereira

 

AACB FOTO DE EDSON DIANTE DA CAPELA

Edson foi sepultado ao lado da Capela que ele construiu.

PP7GU, Edson Gomes Lins, nosso padrinho de Rádio Amadorismo teve que desligar os microfones dos seus mais de 40 rádios depois de 70 anos de comunicação com colegas espalhados pelo Brasil e pelo exterior.

O rádio amadorismo e o aeromodelismo ficaram desfalcados com perda do amigo e seu consequente silêncio.

Junto aos nossos familiares e as inúmeras pessoas que se fizeram presentes participei no Engenho Ouro Preto, Município de Novo Lino, aqui nas Alagoas, da despedida de sua longa vida nesta Terra, onde, entre muitas coisas fez o bem a quem a ele recorria.

Um dos seus amigos, o honrado Juiz Antonio Luna, à beira do túmulo, em um belo discurso discorreu sobre as virtudes do homenageado acrescentando que entre elas se destacava a fidelidade aos amigos, o que posso testemunhar como verdadeira.

Ruminando Lembranças

Autor:  Clodoval de Barros Pereira

01

Os irmãos Alexandrino e José de Barros Pereira, – (meu pai, o de camisa branca.)

Misteriosamente meus ouvidos passam a escutar vozes de homens, cantos de mulheres e gorjeios de pássaros misturados a um murmurinho igual ao que eu ouvia na fazenda de meu pai em Joaquim Gomes, no Estado das Alagoas. E esse murmurinho se associa aos sons produzidos pelo farfalhar das palhas dos coqueiros existentes nas proximidades da casa.

Também escuto um marulhar que não consigo decifrar se é proveniente da chuvarada ou do riacho que desce serpenteando mata abaixo até se misturar às águas do pequeno lago existente ao lado da casa onde morou o meu tio Alexandrino. Se não, pode ser da bica que meu pai mandara colocar para servir de vazante a modesta represa formado por um pequeno veio d’água.

Esse pequeno curso líquido forma um volume como se fosse um riozinho ao se misturar com os seis que também nascem em Petrópolis. E quando da época invernosa, nos dias que a chuva se desprende forte, ninguém passa para casa de Jurandir, pra de seu José Correia nem para a de seu Tino.

O riacho se robustece e chega a transbordar pelo paredão doutro açude existente mais embaixo e inunda a estrada, o cercado e parte do canavial. Não passa nada! Gente, gado, cavalo ou burro só passam se for a nado. Somente a ausência das chuvas baixa suas águas.

Ao deixar as terras de Zeca Barros, passa pelas fazendas Gibraltar e Bom Destino para desaguar no Camaragibe, no final da rua que atravessa Joaquim Gomes. Inquieto, toma o rumo das usinas Santa Amália, Camaragibe e segue vale abaixo até as cidades de Matriz, e Passo, todas de Camaragibe para, depois delas, mergulhar no Atlântico.

E o burburinho continua trazendo aos meus ouvidos o mesmo gotejar vindo do telhado, os mesmos mugidos, relinchos, latidos e vozes com sotaques alagoanos, coisas que eu costumava escutar na casa do meu pai de onde a vida fluía feliz, apesar das dificuldades.

Ouço-o conversando com o pessoal da fazenda sobre a contribuição da chuva no crescimento das canas, das pastagens e dos roçados pertencentes aos trabalhadores. E não deixa de frisar que sem inverno não teria com pagar ao Banco do Brasil o mísero financiamento adquirido com muito sacrifício para tratar do canavial.

Lembro que a gente comia “o pão que o diabo amassou” nas mãos do Banco do Brasil porque ele sempre descriminou os pequenos agricultores. Talvez esse rigor motivasse seus funcionários serem tão rigorosos conosco, o que não acontecia em relação aos usineiros.

Seu José Correia, o homem que lida diretamente com os trabalhadores de Petrópolis não contêm sua alegria com o tempo chuvoso. Ele conversa com meu pai sobre os efeitos da chuva, contam causos e gargalham; aliás, a alegria também se estende aos trabalhadores que desejam ver seus roçados viçosos e produtivos.

E as gargalhadas do meu pai misturam-se ao gotejar das águas do telhado animando os passarinhos que disparam em cantoria nas gaiolas penduradas nos caibros do terraço, enquanto eu, estendido numa rede meditava sobre a vida dos que passam os dias vergados ao cabo da enxada em troca dum salário que mal dava para comer.

Também pudera! Um quilo de cana de açúcar sempre foi e continua sendo, até os dias atuais, mais barato que um quilo de merda. Merda de boi, de cavalo de galinha, de gente. Todo tipo de merda usada para adubar as hortas e os jardins das fartas mansões da gente que se proclama abençoada.

Ciente de que essa miséria é fruto do Sistema Capitalista, sempre que posso, faço-lhes ver que essa injustiça não é oriunda dos desígnios de Deus. E passo a eles o que aprendi com Friedrich Engels em A origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado e muitos já se inclinam a admitem que as injustiças sociais são obras da crueldade capitalista.

Sem esse entardecer chuvoso não estenderia meu corpo na rede do alpendre, nem ficaria a ruminar coisas passadas. Também se não fosse esse ruminar não teria caído no enlevo que me arrastou aos primórdios da juventude, fazendo com que chegasse até a Rua d’A Notícia, número 947, em Palmares.

Esse o endereço do casal Antônio Leão de Almeida e Amélia Marroquim de Almeida, para onde fui levado pelo meu padrinho, o revolucionário Brivaldo Leão de Almeida, participante do levante comunista desencadeado no quartel da Praia Vermelha, no Rio.

Nesse endereço revejo Vilebaldo Leão de Almeida, Léa Marroquim de Almeida, seu marido Luís Gonzaga da Silva e sua filha Amelinha. Depois de abraçá-los parto ao encontro dos ex-colegas da Escola Técnica de Comércio dos Palmares e dos meus antigos professores.

Sentia-me alegre por reencontrar os que tanto me ajudaram, mas tinha que ir à procura dos companheiros de lutas políticas com quem conspirava contra o perverso sistema político-econômico que persiste na exploração do povo trabalhador.

II

02

Locomotiva com vagões de passageiros

Sinto-me confuso, a sonolência não permite que me situe. Ora penso que estou em Petrópolis, ora que isso é resultante de uma mente conturbada. Inclusive, não gostaria de retornar àquela fazenda para não exumar as coisas que o passado sepultou.

Partindo desse princípio chego a admitir a retomada os caminhos que trilhei na juventude, quando troquei Palmares por Recife. Sinto como se fosse uma reconstituição da minha existência dado as imagens que me invadem a mente, forçando-me a ruminar essas lembranças.

Não é à toa que me vejo em Palmares diante de Luís e sua mulher Léa Marroquim de Almeida, criaturas divinas que muito fizeram para minorar as minhas agruras ajudando-me a lutar pela sobrevivência, oferecendo-me pão e teto sem pensar em reembolso.

Mas a esperança me diz que um dia transporei vales e montanhas para retribuir um pouco do muito que recebi das pessoas amorosas e solidárias. Sei que ainda não realizei esse desejo, mas já fiz uso do cinzel que fez sangrar as paredes do meu coração gravando seus nomes abaixo da legenda que fala das minhas refregas nas batalhas que participei em favor dos injustiçados.

Por onde quer que eu passe não esqueço os amigos nem os familiares. Ainda tenho que abraçar os manos, Nivaldo, Zito e Zita e a prima Marili de Barros Lins. E não posso deixar de procurar Dilma, Ivone Simões e os irmãos, meus amigos de infância, Risaldo e Rodolfo Raposo e outros que gastaria dezenas linhas se tivesse que nominá-los.

E ainda tenho que ir à casa acolhedora da família de João Capistrano, pois já fui informado que seu filho, o meu amigo Hamilton Capistrano espera-me para darmos uma voltinha pelo “mundo do pecado”

“que lá é bom e tem tudo o que se quer”.

E fomos rever os cabarés! Demoramos um pouco na “Pensão Riso da Noite” e saímos para a “Monte Carlo”, onde ficamos porque encontrarmos os poetas Fenelon Barreto, João Costa e Ezequias Pessoa voltados para José Ramos da Fonseca que declamava de sua lavra, o soneto ADEUS, dedicado a Litinha que escutava atenta a homenagem que lhe prestava o jovem poeta. Eis a primeira quadra que ainda não esqueci:

“Apesar de viveres prostituída

E não ser o teu mundo o dos conversos,

Foste sempre a razão da minha vida,

Dos meus dias de glórias já dispersos.”

Nem contava que o primo José Eugilton Holanda de Vasconcelos chegaria acompanhado de “João Barba Preta”, “João Barba Azul” e “Zé Carioca”. Souberam da nossa presença no Alto do Lenhador e vieram avisar que uma feijoada borbulhava no caldeirão do “Bar Riso da Noite”, de seu Amaro Quirino.

Partimos para saboreá-la regada com cerveja e aguardente Rainha Pernambucana. Comíamos e bebíamos escutando o saudoso Quarenta cantando sambas, tangos e boleros. O gemer das cordas do violão juntavam-se aos açoites do seu canto que lembravam o da graúna, pássaro que tinha na plumagem a negritude de sua pele ou a cor daquela noite. E a sua voz bonita ecoava pelo salão, ganhava as ruas, os prostíbulos vizinhos e nos instigava a levar o copo à boca, especialmente quando ele cantava o tango que reproduzo um trecho a seguir:

“Mas se passa pela rua algum amigo

em cuja porta a desgraça não bateu,

peço que entre nesse bar e beba comigo,

hoje quem paga sou eu!”.

Estava tão embevecido naquele aconchego que só olhei o relógio quando os pardais começaram a chilrear, anunciando o amanhecer. Ao fazer ver aos companheiros que chegava à hora da partida, alguns relutaram alegando que sobre a mesa ainda restavam garrafas a serem abertas e seria uma desfeita deixá-las retornar ao armazenamento. E outra! Quarenta não largaria o pinho sem cantar o tango Hoje quem paga sou eu.

03

Os fétidos barracos onde a desgraça impera sobre os esquecidos de Deus.

Infelizmente, aproximava-se à hora do trem das seis e eu precisava deixar os amigos e o chão hospitaleiro da “Atenas Pernambucana”, assim cognominada por ser berço de Poetas e Escritores de Pernambuco. E ali se encontravam José Ramos da Fonseca e o Professor Fenelon Barreto, reconhecidos como integrantes da plêiade que engrandecia as letras da nossa “Atenas”.

Não resisti aos apelos e começamos a esvaziar as últimas garrafas, só então começaria as despedidas. Conforme o combinado, abracei os amigos e beijei carinhosamente Julinha, Litinha e Terezinha para em seguida tomar o caminho que levava à Estação Ferroviária da Great Western, onde eu havia embarcado anos atrás para Recife desejoso de trabalhar e fazer um curso que me possibilitasse lutar com mais afinco pela leva de explorados e oprimidos, aquela que eu me sentia parte integrante.

Ao entrar no vagão, o trem apitou avisando que recebera ordem de partida. Não demorou suas rodas começaram a ranger nos trilhos em direção à próxima parada, e assim, sucessivamente, até chegar à cidade que eu havia escolhido para viver.

Assim que o comboio empreendeu velocidade, passei a escutar o matraquear de suas rodas nas emendas dos trilhos. Eram uns troc, troc ritmados que davam até para ninar o sono da noite que passei em claro, mas, a apreensão em enfrentar a metrópole desconhecida afugentava a possibilidade de um cochilo.

Resisti ao que insinuava a maciez da poltrona, levantei a cabeça e olhei à esquerda para poder contemplar aquele mundo que passava pela minha janela. Ele não me era estranho, o poeta Manuel Bandeira já havia mostrado em um dos seus Poemas sobre suas viagens de trem que:

“Passa ponte, passa poste,

passa pasto, passa boi, passa boiada,

passa galho de ingazeira debruçada no riacho.”

E passa mesmo… Passaram cidades, engenhos de açúcar, canaviais, carros de bois e trabalhadores com suas enxadas ao ombro… Passou tanta coisa, mais tanta, que quando dei por mim a locomotiva serpenteava os manguezais repletos de palafitas, onde morava a gente mais desvalida da grande cidade onde eu iria desembarcar.

Não me assustei muito com aquela miséria porque já havia lido, em GEOGRAFIA DA FOME, o que o Médico e sociólogo pernambucano, Josué de Castro escrevera sobre o abandono imposto àquelas famílias relegadas a podridão da lama dos manguezais.

Neste livro, o grande sociólogo descreve O ciclo do caranguejo, como ele se processa a partir daqueles míseros casebres empoleirados, que chamam de palafitas. É de cima deles que as pessoas evacuam os dejetos que serão comidos pelos caranguejos que também habitam aqueles manguezais. Ao crescerem e engordarem, esses crustáceos serão capturados e comidos por quem lhe alimentou com seus dejetos, e assim sucessivamente…

La comparando a miséria daquele povo à vivida pela gente da minha terra, quando o trem se aproximou da Estação Central de Recife. Quantos sonhos, quantas incertezas eu levava comigo! Assim que o carregador pegou a minha bolsa para conduzi-la ao taxi, as saudades juntaram-se as visões dos charcos fedorentos levando meu peito a inflar como se todas as dores do mundo tivessem se juntado às minhas para explodi-lo.

Ao descer do veículo na Rua Nogueira de Melo, em Afogados, meu tio Alexandrino de Barros Pereira estendeu-me as duas mãos. Ou melhor, todas as mãos daquela casa se estenderam para mim. Mas o meu despreparo era tamanho que eu mesmo não sabia como iriam proceder para ajudar um caipira numa cidade tão grande e tão desumana. Não fossem eles, dava para plagiar o Nazareno quando do seu trajeto ao calvário:

Olhei em roda e não houve quem me acudisse;

busquei, e não houve quem me ajudasse.”

Barreiras intransponíveis levantavam-se ao longo do meu caminho, algemas invisíveis prendiam-me as mãos. Diante de mim um mundo cão, explorador, cheio de traição e maldade, minava as minhas energias e conspiravam contra os sonhos que continuo desejando realizar.

Mesmo assim eu não dava trégua às vicissitudes; durante o dia trabalhava no comércio em um emprego que o meu tio arranjara para que eu pudesse ao menos comprar os livros e pagar o colégio que passaria a frequentava à noite. Mas, como havia previsto, foi em vão, o trabalho era estafante e o cansaço não permitia nem um olhar aos livros.

A fadiga dificultava-me a concentração e não permitia que os ensinamentos fossem absorvidos. Desligava-me do assunto em pauta e o meu pensamento fugia, ganhava às praças, quando dava por mim, estava com os comunistas que lutando em favor dos desvalidos.

04

As luxuosas moradias onde residem os protegidos da sorte.

E não eram somente os que tiveram que trocar as palhoças dos engenhos pelas fétidas palafitas que se espraiavam pelos charcos da periferia de Recife que me constrangia. Tinham as jovens ingênuas, induzidas por cafetinas que destroçavam seus sentimentos amorosos para favorecer os que comercializavam o lenocínio. Esse nefasto meio de vida degrada o corpo, a beleza e o caráter da mulher, o que ela tem de mais puro e belo.

A mente conturbada fazia-me esquecer de fechar a portinhola que dá acesso à memória, deixando que os desafortunados invadissem o meu consciente para transtornar ainda mais a minha vida e aumentar a indignação que me possuía. E não tinha como escapar porque as coisas que combato tornam-se constantes e, assim sendo, não tenho como esquece-las.

Se ia à Guararapes tomar um chope com Alexandrino de Barros Filho no Bar Bavoy, esses desvalidos me acompanhavam como até hoje me acompanham. E por fala do Savoy, o inesquecível Carlos Pena Filho, um dos seus assíduos frequentadores, escreveu um poema que agora me veio à mente a sextilha abaixo:

“Nas mesas do bar Savoy,

o refrão tem sido assim:

São trinta copos de chope,

são trinta homens sentados,

trezentos desejos presos

trinta mil sonhos frustrados.”

Não eram poucos, eram trinta mil sonhos frustrados… Eu mesmo nem sei, impossível saber quantos copos de chope já tomei. Agora, devo ter mais de trezentos desejos presos e sonhos frustrados muito mais de “trinta mil, tanto é que tomávamos chopes e mais chopes e eu mesmo não conseguia libertar os meus sonhos nem meus desejos, eram evidentes em minha alma e em meu coração.

III

Sinto que a chuva começa amiudar, o gotejar quase não se faz ouvir deixando que as vozes, os berros e os rugidos do vento no telhado se tornem mais audíveis. Mas o vento continua provocando o farfalhar acalentador da folhagem dos coqueiros para que eu retorne à “Capital Heróica”. E o vento que corre o Mundo, vem correndo para me ajuda chegar à Pracinha do Diário onde devo aplaudir um homem “feito de ferro e de flor”.

Sem o farfalhar daquelas palmeiras eu não teria chegado a tempo de mergulhar na multidão que se acotovelava em volta ao líder para com ela gritar o seu nome no instante que ele pedia ao povo, como pedia Dom Helder Câmara, que lutássemos por um mundo sem escravos e sem senhores, o que, em síntese, seria um mundo sem explorados e sem exploradores.

Ao ouvir a palavra escravos, a voz de Marta, irmã da advogada Mércia, chega aos meus ouvidos dizendo que Castro Alves encontra-se no Teatro Princesa Isabel. Juntei-me a ela para trocarmos a Pracinha pelo Teatro e ainda chegamos a tempo de participar dos aplausos ao poeta quando ele deu mais ênfase a esses versos:

“Senhores! Basta a desgraça

De não ter pátria nem lar,

De ter honra e ser vendida

De ter alma e nunca amar!”

Era ele sim, o poeta dos escravos, declamando do mesmo palco que, há quase dois séculos, por tantas vezes, se insurgira contra a escravidão. Sua voz corria a plateia, juntava-se aos aplausos de sua amada Eugênia Câmara e ia ecoar pelas Senzalas e pelos Quilombos, as sementes da África que começavam a geminar pelo Brasil.

Mesmo atônito diante de tanta beleza, cruzei a Ponte Princesa Isabel e tomei a direção do Parque Treze de Maio para rever o “Velho Casarão” da Faculdade de Direito. Eu não queria evocar somente a história que ele incorporava desde sua criação, desejava suscitar as imagens dos que haviam passado pela secular Instituição de Ensino.

05

Nessas miseráveis palafitas vivem os desvalidos da “Cruel Cidade”.

Ao começar galgar seus degraus, invoquei figuras como Castro Alves, Demócrito de Souza Filho, Alexandrino de Barros Filho e outros filhos do sofrido povo nordestino, dando ênfase à memória dos que dedicaram suas vidas à luta em favor da liberdade.

Foi naquela instituição que Castro Alves, Alexandrino e Demócrito se refinaram na arte do combate aos opressores da gente espoliada. Castro Alves combateu com a Poesia; Alexandrino, com a Lei e Demócrito com o Verbo que arrebatava multidões.

Demócrito pagou com a vida, os sicários conseguiram silenciar sua voz na “Tribuna da Pracinha”. Tombou varado pelas balas de jagunços assalariados por trastes acostumados a sustentar os filhos com o dinheiro roubado dos cofres Públicos.

Castro Alves não resistiu à tuberculose oriunda das noites insones e Alexandrino de Barros Filho padeceu nas masmorras da ditadura implantada pelos militares. Mesmo enfrentando prisão, tortura e morte, nunca deixaram de fustigar os inimigos da Pátria e do povo.

Ao retornar do Parque Treze de Maio, despedi-me de Marta e ainda refletindo sobre esses lutadores dei de frente, na Praça Joaquim Nabuco, com meus tios Alexandrino e Mário de Barros Pereira que se dirigiam à Estação Central. Juntos, chegamos a ela onde Alexandrino, o pai, convidou-me a ‘molhar a palavra’ com uma “branquinha” enquanto esperávamos a chegada do comboio que mais parecia um amontoado de ferro velho. Já havíamos decidido pela terceira dose quando ouvimos um berro acompanhado dum ranger de ferros.

Era ele que se aproximava. Embarcamos, saltamos em Ipiranga e caminhamos até a casa de número 65, da Rua Nogueira de Melo. A emoção desse retorno só não foi maior porque a minha tia Alaíde Cavalcanti de Barros não se fazia presente.

Balbuciei, silenciosamente, o seu nome, mas ela não respondeu, já não vivia entre nós, dormia o sono que acalento com a minha eterna gratidão. A casa era a mesma que entrei ao deixar Palmares onde ela com o meu tio, o seu marido, uníssonos, saudaram-me:

– Entre, a casa é sua!

Entrei e juntei-me a eles e seus filhos, — os filhos que ele chamava de “minhas três bolas de ouro” — para desfrutar da harmonia e do aconchego daquele lar.

Almério estudava veterinária, Alexandrino advogava e Alcy, hoje coronel, era o major Cavalcante, a quem continuo admirando por não ter maculado o verde de sua farda com o sangue que os carrascos da ditadura derramaram dos meus companheiros de ideais.

IV

Ainda sorrio quando lembro o meu tio Alexandrino tentando encorajar-me, mencionado fatos que se referia a ele e a mim, como nós quatro.

– Nós quatro?! – Perguntava eu.

– Sim, nós quatro! Homens como você e eu não se conta por um, conta-se por dois. Portanto, dois mais dois, quatro! Nós quatro, sim!

Era o bastante para cairmos na gargalhada, apesar da minha convicção de que homens da sua estirpe e do seu saber não se contam por dois, conta-se por dez, tanto é que jamais tentei medir meu ínfimo saber com a enorme dimensão dos seus conhecimentos.

O meu tio é reconhecido por onde passa como homem talentoso e sábio. O seu currículo é recheado das mais expressivas qualificações adquiridas nos duros bancos da “universidade da vida”, onde sempre pelejou com bravura e tenacidade invejáveis.

Sabendo do meu gosto pela poesia recorria a ela para tentar amainar a revolta que alimentava o meu desejo de lutar em favor dos filhos dos mocambos e das palafitas que largavam seus fétidos cômodos para vagarem pela minha imaginação.

V

O êxtase que me conduziu a este retorno imaginário, além de reaviar em minha memória criaturas solidárias à causa dos oprimidos, serviu para ofuscar figuras idênticas às que o Médico e Memorialista Pedro Nava comparou a invólucros de mijo e merda.

06

Na beira mar, um dos bairros onde residem os bens sucedidos na vida

Percebo que o vento parou de rugir, que os trovões silenciaram e as palmeiras deixaram de farfalhar… Essa calmaria fez com que eu escutasse quando Alexandrino Filho solicitou ao garçom a quarta rodada de chope, mas na hora que brindamos para levá-lo à boca, meu pai balançou o punho da rede:

– Levanta, tem café quente!

– Mas, logo agora que estávamos no Bar Savoy!

– No Bar Savoy?! Que história é essa?!

– Sim, no Bar Savoy! Alexandrino Filho e eu.

Ainda escutei a voz de Carlos Pena declamando

“Recife, cruel cidade, águia sangrenta, leão”.

VI

Que coisa estranha, não encontro explicação, uma vez que não estava em Petrópolis, nem sonhando, nem acordado. Em êxtase?! Não sei. O que posso assegurar é que depois de um sobressalto, olhei a tela do computador e dei com esse amontoado de letras que me causou estranheza por não ter acionado nenhuma de suas teclas.

E são tão notórias as minhas limitações no enfrentamento da vida, especialmente no que concerne ao manuseio das letras, que prefiro não elucubrar sobre as possibilidades de alguma entidade ter penetrado em meu cérebro à procura de desvendar coisas adormecidas em minha memória.

Somente agora os primeiros raios de sol começam a dissipar o que resta da escuridão, dando-me oportunidade de enxergar com mais nitidez a Capelinha de Nossa Senhora de Fátima, projetada por Oscar Niemayer a pedido de dona Sara Kubitschek. E entre o edifício onde moramos e a igrejinha, vejo e escuto, através da vidraça da janela, um sabiá gorjeando numa das galhas do flamboyant que se posta aqui em minha frente.

Não tenho a mínima idéia de como tudo isso se fez. Permaneço na SQS 108, na sala do Ap. 301, do bloco E, em Brasília e essa permanência deixa claro que não estive em Petrópolis, não passei por Palmares e muito menos Recife.

Arregalei os olhos, procurei em minha volta, ninguém. Os poetas haviam sustado seus versos e o murmurinho que eu achava ser de Petrópolis não mais se fazia ouvir, somente o sabiá cantava no flamboyant, provavelmente saudando o amanhecer na cidade que Juscelino chamou de Capital da Esperança.

Nenhuma gargalhada do meu pai nem de “seu” Correia. Nada de vozes de Luis Sebastião, Zé Pequeno, Cícero Leite ou Zé Leite, muito menos os aboios do mano Jurandir tangendo as vacas para o curral sempre que ia trancar os bezerros.

Nada de mugido, balido ou cantar de galo. Marulhos e farfalhos nem pensar, somente um zunido de um silêncio quase sepulcral.

Tudo sumira, calara, emudecera… Somente na tela do computador esse amontoado de letras formando vocábulos, frases e períodos.

Preciso chegar a uma conclusão até porque isso não é comum a um indivíduo de tão pouca fé como eu.

Tento concentrar-me para meditar sobre o ocorrido, mas o telefone tilinta quebrando o silêncio existente na sala. Atendo a ligação que vem de Recife. É o meu irmão Clodomir avisando que o nosso tio Alexandrino acabara de falecer. Invade-me um sentimento de tristeza e revolta.

Um misto de frustração e pesar.

É mais um pedaço que se desprende de nós.

Ficamos menores. O Recife também.