O soluço da indignação

Autor: Clodoval de Barros Pereira

     Sempre que a saudade me fustiga o coração, retorno para rever as brenhas onde nasci e passei os primeiros anos de minha vida, correndo atrás de bois e caçando animais silvestres, tal qual um selvagem, alheio ao que se passava no mundo.

     E foi dessa terra onde passei a minha meninice que tive de partir à procura doutra que me ajudasse a sair da ignorância em que vivia mergulhado. E encontrei a terra que procurava onde aprendi o suficiente para ler algumas obras de cunho socialista nas quais aprendi que Deus fez o mundo para todos os viventes, porém, meia dúzia de espertos se tornou dono dele.

     Não foram somente a leitura desses livros que me abriram os olhos. As conversas que mantive com pessoas mais experientes, ajudaram-me a perceber que a argúcia desses espertos dessa se estendia de geração a geração. E os seus descendentes continuavam donos das terras, das florestas, dos rios e dos animais. Finalmente cheguei conclusão que esses espertalhões continuam sendo donos de tudo o quanto existe sobre a terra, até mesmo dos rios e dos mares.

     Enquanto aprendia como enfrentar essa casta que vivia a explorar a gente trabalhadora, da qual eu fazia parte, resolvi, até como forma prática de aprendizagem, ajudar os meus companheiros no combate dessa distorção social que tanto prejudicava os desafortunados.

     Então o que fazer? Entrei no Partido deles e comecei meus embates contra os defensores de um sistema agrário atrelado a uma política que vem da época do Brasil Colonial, do tempo da escravidão e essa política tem por finalidade resguardar privilégios que os poderes que constituem o Estado lhe asseguram.

     E razões outras me fizeram retornar e ingressar na política partidária, mesmo sabendo que o povo que habitava a vasta região pensava diferente de mim. E entrei pelo Partido dos dominadores, até porque, todos os Partidos lhes pertenciam. O que os trabalhadores criaram para si fora cassado, jogado na ilegalidade e proibido de atuar a não ser na clandestinidade onde ele sempre existiu e lutou em favor da classe trabalhadora.

     Recentemente fui à Colônia Leopoldina, minha terra natal e subi as escadarias de sua principal igreja e fiquei a contemplar a praça que se estende diante dela, enquanto pensava nos riscos que ali havia corrido com Tobias Granja, Washington Lacerda, Luiz Valter, Eurico Uchoa e outros companheiros nos idos da famigerada ditadura que os militares implantaram em 1964.

     Enquanto rememorava aqueles tempos, meus olhos alcançaram o velho flamboaiã coberto de flores vermelhas. Olhei-o demoradamente e lembrei-me que foi à sua sombra que conversei com Dina, uma garota ousada que também queria consertar o mundo.

     Fui até ele e fiquei novamente sob suas pétalas recordando a última conversa que mantive com a moça rebelde sobre as levas de retirantes que fugiam das terras secas dos sertões para amargar a vida nos canaviais das terras chuvosas que se situavam entre o agreste e o litoral.

     Naquele dia criticamos impiedosamente os políticos que surrupiam os cofres públicos e não se envergonham em encher a pança da família com o dinheiro roubado. Também não poupamos os que vivem segurando as correntes de ouro amarradas às coleiras que eles prendem aos pescoços de suas mulheres para dificultar-lhes as costumeiras fugidas para os braços dos amantes.

     Maldizemos tanto essa corja e o legado que ela deixa para seus descendentes que esquecemos o passar das horas e a tarde se foi com tanta sutileza que o anoitecer nos pegou sem que déssemos por conta.

     Notando que Dina demonstrava indignação, e que a sua voz cada vez mais se embargava, procurei distraí-la, enveredando por outros temas, mas a jovem retomava a conversa inicial. Sentindo dificuldade em persuadi-la, mostrei-lhe no avançar da tarde o horizonte escarlate e apontei-lhe a “papa-ceia” piscando no céu lusco-fusco.

     Nunca esqueci aquele momento, pois, no instante que a moça mirou o astro, o flamboaiã derramou sobre ela uma enxurrada de pétalas vermelhas que escorreu pela sua face, avermelhou seu colo e se espraiou pelo chão.

― São lágrimas de sangue, a natureza também se indigna, ― brinquei.

     Dina esboçou um sorriso e atirou-me umas pétalas que apanhou sobre a saia que cobria suas belas coxas. Peguei uma, beijei e lhe agradeci a amabilidade. Ela esboçou um leve sorriso e me pediu que lhe mostrasse às terras que eu acabara de falar delas.

― Gostaria de caminhar por essas terras, por todos os seus recantos. Conhecer a região da Mata, onde as chuvas são constantes e passar pelo sertão, onde o sol bebe os açudes, desfolha as árvores e mata tudo o que nasce.

― Olha, Dina, de antemão quero lhe dizer que nas duas terras o homem sofre, passa fome e sente sede, mas se é esse o seu desejo, mostrar-lhe-ei.

     A mulher arregalou uns olhos grandes, molhados e pousou sobre os meus que também não pestanejaram enquanto nos olhávamos. Ela era muito bonita, mas nesse dia estava tão encantadora que parecia uma flor desabrochando para o mundo.

     Estendi-lhe a mão que ela segurou firme, entrelaçando seus dedos aos meus, enquanto caminhávamos em direção ao sol que começava a se declinar por trás de uma montanha à procura de agasalho.

     E para lhe fazer ver o avançar da noite, mostrei-lhe a lua comboiada pelas estrelas no horizonte próximo. Era uma lua tão clara que dava para ver as até as fivelas reluzentes que adornavam os arreios do cavalo de São Jorge.

     Caminhamos sob essa lua prateada até que o novo amanhecer trouxesse o calor provocado pelo sol para que ela visse a folhagem orvalhada gotejando sobre a relva verde. Apesar do frescor da manhã, o esforço do caminhar nos fazia suar.

     Suar? Acho que não. Pois o paraibano Noaldo Dantas, que se fez alagoano, estribado em sua sensibilidade poética disse que mulher bonita não sua, orvalha. E quem sou eu para desfazer de um poeta? Puro engano, Dina não suava, orvalhava; quem suava era eu.

     Desfeito o mal entendido, retomamos a caminhada.

     E como fiz ver em períodos anteriores, a jovem continuava vigorosa e não demonstrava nenhum sinal de fadiga pela noite indormida, nem seus olhos transpareciam sinais de excitação decorrentes dos sons erotizantes que as florestas costumam emitir. Parecia surda aos dengosos pios dos pássaros e aos rangidos dos galhos das árvores embalados pelo canto das águas do riacho que margeávamos.

     Depois de muito caminhar chegamos à margem direita do Jacuípe. O rio estava tão cheio que levava em seu dorso blocos de baronesas floridas que pareciam jardins aquáticos, navegando rumo ao mar. Embarcamos num deles e descemos rio abaixo até aportarmos em sua desembocadura, no povoado de Peroba, situado em Maragogi, onde Alagoas faz divisa com Pernambuco.

     O mar estava encantador e dava a impressão de que o sol nascia do ventre de suas águas, por surgir no horizonte, rente à massa líquida que lhe espelhava. Era deslumbrante contemplar naquela tela gigante tanta beleza produzida pela Natureza sem uso de cavalete, tinta ou pincel.
Os olhos de Dina não piscaram enquanto ela acompanhou o sol emergir das águas, ultrapassar a linha do horizonte, romper uma cortina de nuvens e reaparecer, refletindo seus raios coloridos nas folhas do coqueiral. As águas brincavam de mudar de cor para se tornarem mais belas ainda. E mudavam do natural para azul turquesa e do azul turquesa para verde esmeralda.

     Fascinada com tamanho espetáculo, Dina aplaudiu as aves aquáticas mergulhando em vôos rasantes entre as vagas enfurecidas que vinham se despedaçar nos bancos de corais para rolarem até a praia onde lhe acariciavam o belo corpo estendido na areia.

     Demoramos somente o necessário para alegrar os olhos e o espírito, pois, eu havia prometido mostrar-lhe outros rios. E para que isso pudesse acontecer, voltei subindo o Una, atravessei o Jacuípe, desci pelo Camaragibe e retornei subindo pelo Manguaba até a nascente do riacho de Pacheco.

     Esses rios banhavam as regiões situadas nas terras molhadas da Mata onde existiam os grandes canaviais e as poderosas usinas de açúcar que haviam desbancado os bangüês, seus pequeninos concorrentes.

     Encontramos os engenhos parados, as tachas de cozimento enferrujadas, os trabalhadores com suas famílias em estado de penúria. Essa situação também degradava os senhores de engenhos que não tinham como escaparem das goelas insaciáveis dos usineiros, como dizia o inesquecível José Lins do Rego.

     Dina viu como era triste um engenho de “fogo morto”, com sua caldeira sem chama, sem gerar o vapor que fazia seu apito ecoar pelas quebradas distantes para expulsar o silêncio que imperava nos grotões desabitados.

     Naquela região onde ainda hoje reinam alguns escravagistas, conhecidos como “senhores de engenhos,” ela conversou com remanescentes da poderosa casta. Uns ainda esperavam a volta do passado de opulência e fartura; outros já haviam se desenganado dessa possibilidade. A maioria tinha vendido suas terras ou cedido por conta de débitos aos novos senhores das grandes engrenagens e, sem meios, penavam ao lado da negrada que a usina empurrava para as periferias das cidades.

     Os que resistiam e passavam a condição de “fornecedores de canas,” atribuíam às balanças das usinas a razão dos seus fracassos. Já os mais “espertos” entravam na política, angariavam cargos, elegiam-se prefeitos, deputados e depois ficavam de costas para os que lhe ajudaram a galgar postos e a meter as mãos nos cofres públicos.

     Bem de vida, à custa do Erário, faziam “ouvidos de mercador” aos clamores vindos da parentela decaída. Negavam-lhe tudo, mostrando-se indiferentes aos que imploravam pelos restos de migalhas surrupiados das prefeituras. E ainda afrontava os empobrecidos comprando gado, embelezando fazendas, construindo mansões.

     Ao findar a caminhada pelas terras molhadas da Mata tocamos nossos passos para as terras secas dos sertões nordestinos. Ela queria conhecer o mundo onde o sol abrasador transformava os homens, as mulheres e os animais em verdadeiras couraças ambulantes.

     A caminhante ficou horrorizada ao pisar as terras daquele mundo cinzento, quente como se fosse um braseiro, onde o gado faminto, as patas em carne viva, cavava ― como disse o poeta Carlos Pena Filho ― em um leito de um “rio sem rio”, água para beber.

     Andando por entre cactos, espinhos e pedras chegamos às terras escaldantes onde reinaram Lampião, Senhor Pereira e Antônio Conselheiro. Desalentada, Dina lagrimejou ao ver pássaros tristes, silenciosos, pousados em galhos esqueléticos de árvores desfolhadas.

     Nenhum gorjeio, nenhum mugido, nenhum farfalhar. Ali só se fazia ouvir o ronco do vento nas gretas da caatinga nua ou as ladainhas das beatas carpideiras encomendando as vítimas da estiagem.

     Até os vaqueiros haviam emudecido. Nenhum aboio ecoava nos vales nem nas quebradas sertanejas. A seca dizimara os rebanhos e sem gado para tanger, os vaqueiros mergulharam no silêncio que imperava nas terras devastadas pela imensa sequidão…

     Não me esqueci de levar a Dina às grandes metrópoles, onde lhe mostrei os bairros burgueses repletos de luxuosos casarões. Também não deixei de mostrar-lhe as favelas insalubres com suas palafitas e seus míseros casebres onde habitavam pessoas misturadas a porcos, cães, ratos e caranguejos.

     Entramos nos Palácios, nos Parlamentos, nos Tribunais, nos Templos Religiosos. Ela constatou que todos esses poderes eram presididos por prepostos da elite endinheira, cuja força se emanava do voto sufragado por vassalos que prostituíam suas consciências em troca do dinheiro que os maus políticos roubavam para esse fim.

     Dina escandalizou-se ao ver autoridades negociando cargos, magistrados apregoando sentenças e pastores de almas clamando por dinheiro enquanto enganava a plebe com curas e promessas jamais alcançadas.

     Ao falar de sua desilusão, diante de tudo o que os seus olhos constataram, a jovem deixou escapar um soluço longo e arrepiante.

     Foi o soluço da indignação.

     Ao vê-la arrefecer, procurei reanimá-la fazendo-lhe ver que nem tudo estava perdido e contei-lhe da coragem e da honradez de homens como o juiz alagoano Antônio Sapucaia da Silva, do poeta angolano Agostinho Neto, do bispo Helder Câmara e do revolucionário Che Guevara.

     Encerramos a caminhada com Dina demonstrando uma profunda tristeza por ter constatado que nos dois mundos, no que chove e no que faz sol, os homens continuam perseguidos, injustiçados e atolados na miséria.

     Para que não partisse deixando-lhe abatida, ainda lhe falei sobre a luta de Jesus Cristo, de Zumbi dos Palmares e de Gregório Bezerra; enquanto isso, ela falou do empenho de Marx e de Lênin pela construção de um sem escravos e sem senhores, como sugeriu Dom Helder Câmara.
Reanimada, abraçou-me desejando que os exemplos desses homens se alastrassem pelo mundo para que outros, além de nós, pudessem segui-los.

     Ao nos despedir falei da minha crença nos homens e nas mulheres que haveriam de juntar-se a nós para construirmos o mundo que sonhamos e que os grandes pensadores idealizaram.

     Antes de partir, beijou-me a face e reafirmou a sua crença.

― Eu sei que amanhã seremos milhões lutando em favor do bem comum que se constituirá em Pão, Justiça e Dignidade.

 

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