Eu venho das madrugadas

Autor: Clodoval de Barros Pereira

    Assim que os primeiros raios solares começavam a penetrar pelas frestas abertas entre as telhas que cobriam a nossa casa, eu e meus irmãos pulávamos da cama e acompanhávamos o nosso pai que se dirigia ao curral para tirar o leite das vacas. Cada filho levava um copo com um pouco de mel de abelha uruçu para misturar ao leite cru, que tomávamos morninho, tirado na hora, daquelas benditas, róseas e adoráveis tetas.

    Foi com ele que aprendemos a massagear, carinhosamente, os mamilos daquelas enormes fêmeas para que deles desprendessem o saboroso líquido que nos servia de alimento. Nessa época, eu beirava os 13 anos, era raquítico e tinha o crescimento retardado, mesmo assim já tirava leite, laçava uma rês e montava a cavalo para correr gado. Já sabia empunhar uma foice, uma enxada e começava a manusear com certa destreza o revolver, a espingarda e o rifle 44, coisas necessárias e corriqueiras nas brenhas onde me criei. Continue reading

Uma perda inesquecível

Autor: Clodoval de Barros Pereira

    Em uma das crônicas que escrevi no ano de 2013, eu falava “dos meus pés estropiados amassando relvas para abrir uma vereda que me oferecesse condições de caminhar a procura de um lugar onde fosse possível permutar a minha força de trabalho por um salário que possibilitasse a compra do alimento necessário a minha subsistência.”

post236-01
 Clodoval com Dr. Salustiano no Engenho Ouro Preto

    Recordo que nessa crônica, ao relatar as dificuldades encontradas para atender meus objetivos, eu falava dos homens que fizeram do seu saber um instrumento a serviço da humanidade. E falei de Helder Câmara, de Evaristo Arns, de Gregório Bezerra, de Carlos Mariguella e Che Guevara. E falei de outros mais, inclusive de Salustiano Gomes Lins a quem nós, seus familiares, carinhosamente, chamávamos de Luzinho.

    Como eu e alguns dos meus irmãos, ele também nasceu no engenho Ouro Preto, inclusive seus irmãos Edson, Manoel Enildo e José Gomes Lins. Todos ainda meninos foram estudar em Recife onde ele, depois de cursar Medicina, após os cursos de praxe, passou a ocupar uma cadeira de Professor de Neurologia na Universidade Federal de Pernambuco e atender em sua Clínica no Bairro das Graças aos clientes daquele Estado e dos Estados vizinhos.

    E eu, por ter acompanhado, à distância, sua vida profissional, procurei incluí-lo entre os que, naquela crônica, escolhi para homenagear. Essa escolha foi por conta do seu empenho em aliviar ou sanar os sofrimentos dos que padeciam de doenças neurológicas, a exemplo da epilepsia.

    Portanto, foi da crônica, A GRANDE TRAVESSIA, que extraí o texto abaixo:

    “Não faz mal acrescentar que o professor Salustiano Gomes Lins, além de poeta e escritor é um dos pioneiros no trato da Epilepsia e Neurofisiologia em Pernambuco, onde criou o primeiro laboratório para o estudo do sono no Brasil, provavelmente no continente Sul Americano. Sobre Epilepsia e Neurologia, o ilustre Médico escreveu livros que lhe deram ingresso à Academia Pernambucana de Medicina.

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 Nesta foto de 2014, Dr.Salustiano em pé, sorridente, e seus três irmãos sentados

    Alonguei-me sobre seus feitos por testemunhar o quanto ele se entregou ao estudo das doenças Neurológicas, especialmente a epilepsia, doença perversa que sempre causou e ainda causa grandes transtornos ao paciente e a quem dele cuida. Pois, como é do conhecimento geral, se não houver tratamento o desencadeamento da crise se faz constante e pode levar a acidentes de conseqüências lamentáveis.

Presumo não ser cansativo enfatizar que essa homenagem se faz merecedora de crença por ser escrita por quem não estudou o necessário para aprender fantasiar, pois a vida só me deu duas opções, ou correr atrás das letras ou do pão. E eu fui forçado a escolher a última opção e tenho certeza de que, se assim não fizesse, não estaria agrupando esses vocábulos.

E para robustecer a veracidade dessa homenagem insisto em afirmar que tenho como companheira uma Neurologista, uma filha Pneumologista, um filho Cardiologista e outro advogado e como nora e genro, uma Oftalmologista e um Fisioterapeuta que, por sinal, são todos bem qualificados e bem sucedidos.

Como podemos observar, citei os meus porque se o meu desejo fosse atirar pétalas, escolheria algum deles, até porque, também, se dedicam a nobre missão de aliviar dores e tentar curar os males dos que sofrem.”

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 Leila e Clodoval Junior na Fazenda Arizona, em casa de Lúcia e Salustiano Gomes

    E foi no desempenho dessa missão que a minha filha Leila, que estava de plantão no Real Hospital Português, foi procurada por uma Médica Neurologista solicitando seu atendimento a um paciente que o serviço de triagem lhe encaminhara, mas não se tratava de caso de sua especialidade.

    Leila fez ver que sua substituta acabara de chegar e estava saindo para um plantão noutro Hospital, mas a Médica insistiu acrescentando que se tratava do doutor Salustiano, um Médico famoso, a quem a medicina muito devia. E Leila:

– Ah, ele é primo do meu pai! E o meu pai gosta muito dele.

    Retornou, vestiu a bata e foi recebê-lo, examiná-lo, fazer seu prontuário e encaminhá-lo para os procedimentos recomendáveis. Conversaram, e ela falou sobre os banhos tomados em sua meninice na piscina da fazenda Arizona, pertencente aquele que ela examinava e tanto admirava.

    Disse-me ela que ele descontraiu um pouco e chegou a falar do prazer de ser atendido pela menina que carregara nos braços, dizendo sentir-se feliz por não ser de praxe chegar a um Hospital e ser recepcionado por um profissional risonho, atencioso e encorajador como ela.

    E para maior coincidência, no dia seguinte, o meu filho, o cardiologista Clodoval de Barros Pereira Junior, visitando um dos seus pacientes na UTI, encontrou-o ao lado daquele que visitava. Conversaram e o respeitável Professor de Neurologia da Universidade Federal de Pernambuco também gostou de rever o menino que, com a irmã, também frequentara sua fazenda e se banhara em sua piscina.

    Isso acontecia porque eu também tinha uma pequena fazenda nas imediações e quando ele, em companhia de sua mulher Lúcia Gomes de Barros Lins se deslocava de Recife para rever seu gado e suas plantações em Joaquim Gomes, aqui nas Alagoas, costumava escrever pedindo que eu fosse até lá para conversarmos sobre temas variados, inclusive gado e agricultura.

    E em meus modestos arquivos repousam essas cartas e esses bilhetes.

    E eu sempre lhe atendia, pois sua amizade era sincera e até me engrandecia. Se tivesse que nominar alguns dos seus atributos diria que era um homem de bom caráter, de muito saber e que primava por tudo o que fazia. Era um bom filho, um bom esposo, um bom pai e um excelente amigo.

    A ele devo ensinamentos a respeito da vida e préstimos que nunca me foi possível pagar, especialmente agora que ele já não está entre nós.

    Ainda bem que, para preencher sua lacuna, ele nos deixou duas filhas Médicas, Lavínia e Lívia e o filho Otávio a quem Clodoval Junior se refere como Cientista, pois assim ele é visto pelos meios Universitários e Hospitalares de Pernambuco.

    Entristecido, lamento profundamente a falta que Salustiano Gomes Lins começa a fazer aos seus familiares, aos seus amigos, aos seus discípulos e a Humanidade, a quem ele tanto se dedicava.

Maceió, 29 de março de 2015.

 

O século que passou ligeiro

Autor: Clodoval de Barros Pereira

    Em conversa com meu pai sobre sua passagem pelo engenho Ouro Preto, ele contou que seu tio Salustiano de Barros Lins havia comprado o engenho no ano de 1914, para onde se mudara de olhos na agroindústria e na pecuária. Homem afeito aos negócios, não deixaria de levar consigo o comércio de secos e molhados que exercia no povoado de Campos Frios.

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Major Salustiano de Barros Lins

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Antes que anoiteça

Autor: Clodoval de Barros Pereira

I

    As mulheres inteligentes, além de não conversarem mais da conta, são comedidas ao falar das coisas que lhes cercam, especialmente das que dizem respeito a sua vida íntima. Isso me faz lembrar uma mulher da minha estima que vou chamá-la de Clarice para não despertar a maledicência de quem a conhece.

    Faço essa associação porque sempre que ela se refere ao lugar onde nasci observo que enquanto os seus olhos passam a brilhar com mais intensidade a sua voz vai se tornando meiga e adocicada. Será que ela acha que eu não presumo que essa reação é resultante do sentimento que nutrimos um pelo outro?

post214-01

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Marília, “a mais cruel das traidoras”

Autor: Clodoval de Barros Pereira

“Tu também, minha inconstante,
Tens tido mais dum amante
E nunca amaste a um só!”

Casimiro de Abreu

    Depois que aprendi a conhecer as letras, de vez em quando surge uma vontade danada de pegar um punhado delas, espalhar numa folha de papel e tentar juntá-las com o intuito de formar palavras que possa coordená-las de maneira que sirva para contar um causo ou narrar um fato que aconteceu ou esteja acontecendo na vida dos outros ou da minha mesmo.

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Bombeiros, seres divinos

     Essa crônica foi publicada no Boletim Geral Ostensivo nº. 003, do CORPO DE BOMBEIROS DO ESTADO DE ALAGOAS,de 06 de janeiro de 2010, conforme se ler abaixo:

1. ESTADO DE ALAGOAS
SECRETARIA DE ESTADO DA DEFESA SOCIAL
CORPO DE BOMBEIROS MILITAR

BOLETIM GERAL OSTENSIVO Nº. 003 – MACEIÓ, 06 DE JANEIRO DE 2010.
PARA CONHECIMENTO E EXECUÇÃO NESTE CORPO, PUBLICO O SEGUINTE:
UNIFORME: EXPEDIENTE: 3º “C”
S. TRANSCRIÇÃO DE DOCUMENTO:
ORIGEM: BOMBEIROS, SERES DIVINO

(…)
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Ninguém foge ao destino

Autor: Clodoval de Barros Pereira

 

 post35-02Sempre gostei de falar das terras por onde andei, das palhoças que pousei, de todo o meu caminhar. E isso me fez lembrar um lugar paradisíaco, onde encontrei uma garota que era bela e viçosa como as flores silvestres que embelezavam as pastagens regadas pelo riacho que pelo vale corria.

Essa garota cheirava as rosas, as açucenas e quando ela falava, sua voz era tão sonora que se chegava a pensar que fosse uma sinfonia. E tinha um canto suave, era tanta a melodia que lembrava o uirapuru ou o nosso sabiá cantando nas matas das cercanias.

E se esboçasse um sorriso cativava o vivente por mais feroz que ele fosse. Essa garota cresceu, tornou-se moça, mulher, sem deixar de ser bonita nem um instante sequer. E pra completar a obra, o mesmo Deus que a criou colocou essa menina em um vale tão florido que parecia escolhido somente para o amor.

E ainda orquestrou mugidos, balidos e cantos de galos pra lhe conter a tensões que o instinto gerava. Esqueceu o Criador que as mulheres bonitas são como as aves canoras, passam a vida fugindo para escapar das gaiolas, sejam elas imaginárias ou até mesmo reais, feitas com talas de ouro pra não acabar jamais…

E também têm as algemas encravadas com brilhantes que não lhes deixam voar pelos vales verdejantes, onde existem falcões com bicos fortes e cortantes, capazes de romper grilhões sem demorar um instante só pra ver as fêmeas livres galopando no o horizonte.

post35-01Se no meu bico não tinha nada que fosse cortante e nem meu corpo exibia a plumagem esvoaçante, a menina ergueu voo, deixou o vale pujante, foi pousar em um lugar repleto de armadilha e de perigo constante. Nunca mais campo florido, deixou riachos e cascatas pra viver numa gaiola feita de ouro e de prata.

Não lhe contei mais histórias, não lhe fiz mais poesias, o meu canto emudeceu e o dela ninguém ouvia. Era um silêncio tão grande que nem o sino plangia quando o badalo batia.

Não mais escutei sua voz, muito menos ela a minha. Como iríamos escutar se eu nunca lhe disse nada nem ela a mim dizia…

Se não fui ao seu encontro porque aceno eu não via. Aprisionaram a mulher numa cadeia com grades tão invisíveis que nem mesmo ela via. E ergueram ao seu redor um muro imaginário que a cada dia subia, mas se ela me acenasse eu derrubava o muro para a nossa alegria.

O muro nem era muro, tanto é que ninguém via, era uma coisa inventada pela aristocracia, pelos senhores da terra, por gente da burguesia, pra sustentar um amor que nem paixão existia. Era um querer sem querer, um verso sem poesia, uma noite sem estrelas, um por do sol sem magia.

Eu só concebo o amor regido por uma paixão, que não seja encabrestada com canga e nem grilhão, porque o amor só perdura se nutrido com afeição.

Eu também não acenei, e por achar impossível deter quem vôo já erguia, fiz como condor rebelde que bate asas e voa ruminando a tristeza que do vale eu conduzia… Por não ter rota traçada, sobrevoei muitos mundos resistindo à solidão como resistem as águias sem rumo e sem companhia.

post35-03

Perdemos de voar céus, viver noites musicadas pelos galos que cantavam ao surgir da madrugada. Para se viver a vida é preciso muita argúcia, nunca foi fácil fugir; impossível desviar das tocaias espalhadas pelas curvas das estradas. Elas são tantas, são tantas, que é difícil escapar…

Até eu, pássaro cabreiro, arguto como uma águia, já entrei em armadilhas mesmo já tendo voado por entre ninhos de estrelas, galáxias desconhecidas e mundos nunca sonhados…

E se ao destino ninguém foge, não sou eu que vou fugir.

Se o meu canto lembrar, o canto de um uirapuru eu vou tentar imitar. Esse pássaro quando canta, é tanta a maviosidade que a floresta emudece para que todos escutem em silêncio o seu cantar. Vou cantar, se ela ouvir, pode erguer voo pra cá.

O destino nunca susta o que foi determinado, tanto é que venho trilhando caminhos nunca traçados e sigo como aqueles que não vão que são levados. E assim eu vou andando, nem ao menos olho de lado, se o destino existe lhe atribuo o resultado. Uns falam que é mistério, outros que é fantasia e eu… Eu não digo nada porque não adianta rodeios, mesmo que haja intervalo, geralmente, o rumo já está traçado.

Bem o disse o escritor José Américo de Almeida em seu livro OCASOS DE SANGUE ao comentar seu pressentimento quando do assassinato em Recife do governante paraibano João Pessoa. Ele insinuou que não acreditar no destino, contudo,

“quando algo está para acontecer se apresenta como coisa muito forte.”

 post35-04

O que não posso esconder é que revi a garota, aliás, hoje mulher, e observei que nela nada mudou. Nem a voz, nem a beleza. Até o sotaque caipira, sonoro e carinhoso continua como sempre… E as rugas que se fizeram em seu rosto não alteraram seu semblante.

As rugas nem sempre enfeiam a beleza, às vezes servem para torná-la mais solene, pois, não fossem as ondas a enrugar a superfície dos mares, talvez, não seriam tão belos como se apresentam.

É o rolar das ondas enrugando as águas que alimenta o fascínio de quem fica diante do mar meditando sobre os mistérios existentes nas profundezas das almas e dos mares.

E como as ondas, a vida também rola e, enquanto a minha se move, eu sonho e medito sobre o adágio que parece uma sentença:

Ninguém foge ao destino.

Um senhor de engenho

Autor: Clodoval de Barros Pereira

    Nas conversas com o meu tio Alexandrino a respeito de homens afortunados ele sempre apontava o seu tio Salustiano de Barros Lins, proprietário do engenho Ouro Preto, como um dos homens mais ricos que havia conhecido. Achando um despropósito, eu contestava:

– Ah, isso não! E Henry Ford? E Matarazzo?

– São uns mendigos comparados ao major Salu. Seus empregados vivem de bolsas penduradas nos braços comprando mengalhos para ele comer. O meu tio não! O meu só compra sal, o resto ele produz em sua propriedade e da melhor qualidade. É isso o que eu considero riqueza. Nunca vi crise que cruzasse as porteiras que dão acesso ao seu engenho.

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Lembrando amigos

Autor: Clodoval de Barros Pereira

     Washington Cavalcanti de Albuquerque Lacerda andou telefonando para saber como eu estava de saúde. Ora, a minha saúde está ótima! É que, segundo Washington, corria lá pelas bandas das Alagoas, de onde sou oriundo, que eu “estava nas últimas,” aqui, em um hospital de Brasília.

     Nada disso é verdadeiro. Washington deve saber que, como ele mesmo costuma dizer, “isso é conversa da oposição.” Até hoje tenho sido duro na queda, não sei se, de amanhã por diante, continuarei sendo. Como a Fênix, tenho ressurgido das cinzas e cada vez que ressurjo vivo mais alguns anos; não 500 como a bela ave, pois, segundo Ovídio, ela se alimenta de incenso, raízes cheirosas e óleos de bálsamo, enquanto eu, criatura de parcos recursos, alimento-me, apenas, de raízes idênticas aquelas que o meu amigo cultiva em sua fazenda Embiribas e Heliópolis, onde, quem sabe? ― também deve ter erguido o Templo do Deus Sol.

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Um dia, a tristeza

Comentário: Clodoval de Barros Pereira

Vou postar um poema que vem após esse comentário, quem o escreveu foi Antônio de Barros Pereira, chamado carinhosamente de Toinho. Esse poeta era meu tio e irmão do meu pai José de Barros Pereira a quem chamavam de Zeca. Devo acrescentar que da verve de Toinho saíram belos poemas que falavam da dureza da vida e da beleza do amor. E como a maioria dos poetas, era um homem apaixonado e ai de quem não o é… Infelizmente toda a sua criação foi destruída e a humanidade perdeu de beber na fonte da sabedoria de um homem de poucas letras, porém de muito saber.

post31-01
Toinho Barros

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